Blusinha roxa

Na chuvarada que desabou sobre a rodovia na noite escura, a carreta capotou. Estrada sinuosa, a água batendo pesado no para-brisa e a discussão violenta foram determinantes para o desfecho trágico. O cavalo se soltou da carroceria, derrapou e emborquilhou. O que parecia ser um tempo sem fim, durou segundos, e estava lá, o corpo retorcido no teto da cabine. A cabeça do lado de fora recebia as rajadas de vento e de chuva, que não davam trégua.

Dailza despertou do choque e descobriu que estava em cima de Edigar, amontoada entre o volante e a poltrona. Sentiu sangue escorrer nos cabelos e na fronte. Apalpou a face e as costelas. O aguaceiro entrava e dificultava qualquer movimento.

Apesar da dor lancinante que não atinava de onde vinha, tentou respirar fundo, virou-se de lado para verificar seu estado e como sairia dali. Passou a vista ao redor e não viu o rosto de Edigar, só um entrelace de pernas. Ainda que muito tonta para compreender a situação, apressou-se. Constatou que não se prendera a nada e se levantou do teto, apoiando-se no encosto da poltrona.

Sentada atrás da carreta, Dailza foi encontrada pela equipe de socorro. Quieta, apática, olhar perdido, a faina do salvamento não a afetava. Os bombeiros praticamente não detectaram ferimentos no motorista inerte, resgatado em meio a roupas de cama encharcadas e latas de cerveja vazias. A remoção de dentro do veículo foi ágil.

– Morreu com alguma pancada no crânio – disse um dos paramédicos.

– Morreu? Como assim, morreu? Não, não pode! Meu Deus, o que eu faço?!

Dailza, que até aquele momento esperava sem se dar conta de si, entregou-se ao desespero. Histérica, gritava coisas sem nexo e não respondia às perguntas dos policiais.

– Era seu marido? Têm família, alguém que possamos avisar? A senhora tem um celular?

O semblante da mulher se resumia a uma mancha de sangue vazada por dois olhos arregalados que não se detinham em ninguém, somente revelavam aflição. Quanto mais questionada pelos agentes, menor a chance de entendimento. Dailza já não distinguia o cenário a sua frente; ao torpor seguiu-se intensa tremura, que começou pelos pés e avançou célere, como uma convulsão.

– Procurem a bolsa dela! – ordenou o comandante.

Perdeu os sentidos.

Na alteração de consciência, enquanto Dailza se debate em espasmos, a mente reconstitui as semanas antes do acidente. A calça branca, a sandália preta de salto alto e verniz, a blusinha roxa – Edigar sempre se desconcerta ao vê-la dentro da blusinha roxa, com decote em V. Dailza sabe e se exibe. Irmã e cunhado no sofá da sala, a mãe na cozinha atarefada com a janta, o sobrinho dorme na rede. A espreitadela de Edigar, o cochilo da irmã, Dailza imprensada por Edigar no canto escuro do terraço, gemidos entalados na garganta, Edigar retornando ao sofá. Outras vezes no quintal, na servidão, no banheiro da garagem, outras tantas na carreta. Na carreta…

– Edigar, para, pelo amor de Deus! Não tá vendo essa chuva? Edigar, fala comigo!

– Cala a boca, sua vadia! Você não vai arruinar minha vida, puta dos diabos!

– Eu tô com medo, Edigar, por favor..! O que você vai fazer comigo..? Me leva pra casa…

– Vou levar, sim, pro inferno! Sua casa é o quinto dos infernos, diaba, vagabunda!

A descarga do raio reflete no para-brisa, seguida do estrondo aterrador que descontrola Edigar, no momento em que Dailza solta um grito agudo e se precipita para cima dele. O temporal na escuridão, a curva, a freada abrupta, a carreta rodando no asfalto.

Dailza está esgotada, sem forças para se mover, quer elevar o tronco para identificar o local e percebe que um acesso de soro detém seu braço. Perscruta o ambiente, libera um suspiro, quando a enfermaria se desenha a sua volta. A memória é apenas uma névoa pálida, quase transparente, em que transitam sequências desconexas. Aperta as pálpebras, com medo de que as lembranças retornem, e pousa a mão sobre o ventre, agora vazio.

* Conto publicado originalmente na Coletânea O Livro das Marias – 2019