Catarina

Sou Catarina Medeiros. Tenho noventa anos. Viúva, mãe de quatro filhos, treze netos, três bisnetos. Moro sozinha na estância que construí com meu marido. Por aqui, hoje, só eu e três empregados na casa, que a mantêm em ordem e a mim, até que finalmente, se houver mesmo esse Deus em que tantos acreditam, que Ele se compadeça e me leve embora. Desta casa, saio enrijecida pela morte, que há de me abater em breve, fechar meus olhos para sempre e empedrar de vez este coração que agora resolveu sofrer. Aqui deitarei e dormirei na eternidade, no descanso cego e sem memória, para jamais lembrar o que fui, o que vivi e do que agora choro.

Sou amargura. Nove décadas de luta infinda e meu fim está descrito. Na mais completa solidão e abandono, como se jamais houvesse experimentado companhia alguma, como se nunca tivesse parido. Eis-me aqui nesta varanda, diante da vastidão de minhas terras. É o que me resta: o trono e as posses. Tantos hectares de cultivo, estes jardins faraônicos – sonho de meu marido -, árvores exóticas trazidas de todos os cantos do mundo, flores raras, esta casa, outras tantas. Pra quê?

O corpo já não se move sozinho, as pernas enrilharam, como se cimentados fossem meus ossos. Da vivacidade de outrora, sobrou um conjunto de carne velha, adoecida e esmaecida, entregue até o fim à ação implacável do tempo. Este tempo que me lembra a todo momento que não sou mais a senhora desta morada, a dona de tudo e de todos, com toda a autoridade que eu mesma me vestia para submeter quem quer que fosse. Agora meus joelhos não me sustentam de pé; o tremor de minhas mãos não me permite erguer o dedo em riste; os pés que pisavam forte no assoalho de madeira e que causava pavor nos serviçais e nas minhas crianças, não se mantêm plantados no chão – não fico de pé e nem caminho sem ajuda. Mandei tirar o espelho do meu quarto. Não vejo mais o reflexo do que me transformei: uma figura frágil, raquítica, dependente, velha. Infelizmente, resta a mente sã, lúcida, a memória límpida de tudo o que me alegrou e que me entristeceu nesta existência que tanto demora a findar.

Ó, destino! O quanto desejo a cada cair de tarde que adormeça e não veja o dia tornar a amanhecer. O quanto espero, por um breve momento, que haja realmente um Deus misericordioso, que se apiede de mim e ceife logo esta vida que para mais nada presta. A não ser para amargar a solidão e o orgulho que tanto ostentei e que, vejo agora, foi o destruidor de minhas alegrias, meus amores, minha saúde.

Longo tempo neste abandono, anos de imobilidade. Eu, logo eu, implacável em impor, apontar, fazer valer tão somente minha vontade e minhas certezas.

Não há mais a quem alvejar com os impropérios da mulher autoritária. Não mais a quem impor minhas vontades e esperar que me atendam. Nem mesmo os empregados; esses apenas toleram e cumprem dia a dia a obrigação de me manterem alimentada, limpa, vestida e medicada. Talvez sintam pena. O orgulho e suas sequelas são dignos de compaixão. Muito dissabor gerado por mim e apenas eu peno.

Porém, não há mais tempo para redenção. Tarde demais para aplacar as mágoas, rancores, dores e sofrimentos provocados por minha falta de lucidez, pela caturrice em me afirmar sempre certa.

Todos se foram. Optaram por viver bem longe, para estarem em paz. Durante muitos anos, não fui capaz de compreender essa escolha. Somente agora, à beira da hora de cerrar meus olhos e mergulhar no nada, quando não há mais o que fazer para que me perdoem e voltem a se aproximar.

Se houvesse outra chance, uma única chance de reencontrá-los para nos reunirmos novamente e assim tentar fazer diferente, quem sabe conseguisse ser menos inflexível. Quem sabe pudesse ser benevolente, desprendida e complacente. Quem sabe aceitasse as diferenças entre mim e os meus.

Por que nasci? Por que vim a este mundo? Qual o sentido de viver com as garras em cima de minha família para garantir que me obedecessem, que me respeitassem, que se sujeitassem? Completamente dominada por meu orgulho, tinha plena certeza de agir no bem, no rumo correto. Mas, não! Cometi o primeiro dos muitos erros que uma mãe comete: criei meus filhos para mim. Eduquei-os para que me devessem, para que se forçassem a me retribuir algo. Eu os culpei, fiz com que se responsabilizassem por tudo de ruim que me acontecia. Cobrei. Nos meus momentos de maior desvario joguei na face de cada um acusações atrozes. Queria-os todos ao meu redor, adivinhando meus desejos e satisfazendo a todos. Tentei impedir que se casassem e depois, que tivessem seus próprios filhos. Não fui a mãe que dá o colo, que afaga, que consola o choro. Fui fria.

Em nenhum momento da minha trajetória de mãe aceitei que cada um de meus filhos era um indivíduo, cada um com sua personalidade e identidade, pessoas com senso próprio.

Padeci minuto a minuto desde que fui mãe pela primeira vez. Equivocadamente julguei ser a maternidade uma obrigação. Amava meus filhos, amo-os, mas meu amor é posse. Amo-os porque são meus e assim quis que fosse. No entanto, viver foi sempre tão duro, que dar conta da maternidade foi, sim, tão somente uma obrigação.

Aos homens, instruí a serem machos, que submetessem suas mulheres, que as tratasse a cabresto curto, para assegurar a manutenção de suas famílias. Às mulheres, ensinei a obrigação pura e simples, com as lides domésticas, em tempo algum o amor à casa, o prazer de cuidar do lar e dos filhos.

Mais um grande erro: criei-os na clara intenção de que me assumissem na velhice. Jamais pensei ou imaginei que tivessem opinião própria, vida própria, desejo de trilhar caminhos diversos ao meu. Pensei apenas em mim, mesmo quando zelava com empenho pelo bem estar de todos.

Minha soberana vontade de manipular, ordenar, conduzir, decidir por eles, intrometer-me na vida de netos e até de bisnetos foi tamanha, que acabei por criar intrigas entre meus filhos. Não contente em ter os caprichos não satisfeitos, delatava um para os demais, sempre à procura de apoio e concordância para meus delírios.

Por fim, nenhum dos quatro falava com os outros e eu, mesmo assim, cega, queria que eles se entendessem, cobrava deles uma atitude que na verdade deveria ser a minha. Louca! Orgulho tão arraigado, não me permitia enxergar que quem causava todos os entreveros era eu!

Minha insanidade não encontrava limite. Em meio a todo o desgaste, não me punha freio. Continuava cultivando desentendimentos, a ponto de colocar marido e mulher em oposição. E, nesse caso, a maior decepção da minha vida foi vê-los irem embora, aos poucos. A partir desses episódios fiquei doente de verdade e sozinha de vez. Não houve mais retorno para tudo o que fiz. Tanto que fui alertada, tanto que tentaram me abrir os olhos contra meu orgulho, mas me recusava a entender. Não sabia entender e não me encorajava a aprender. Não aceitava que a responsável pela minha desgraça era somente eu. Ainda acreditava que meu poder de mãe era supremo e que todos estavam infligindo uma ordem natural. Todos deviam a mim!

É doentio. E eu nada sabia. E nem sei o que vale essa nesga de arrependimento, também não posso dizer que, caso voltassem, não retomaria as coisas de onde parei. A solidão me abriu os olhos, fez-me lembrar do que me disseram diversas vezes, em fragmentos e em prantos, enquanto eu esbravejava, do quanto sofriam. De que me adianta reconhecer agora? Não terei mais o perdão de ninguém. Eles não virão. Morrerei logo e comigo irá essa culpa. Se acreditasse em algo parecido com o que chamam de Deus ou Jesus, poderia crer que meu arrependimento me levaria ao céu ou um paraíso ou a uma nova oportunidade de me redimir.

Por que você me deixou tão cedo, Inácio? Por que sair de perto quando ainda tínhamos as crianças pequenas e tanto por fazer nas terras? Era seu maior sonho – o jardim – e mal deu tempo de vê-lo pronto; as árvores não tiveram sua apreciação. Fizemos planos para a estância, a plantação, os animais, nossos filhos. Íamos viajar! Conhecer o mundo!

Você dizia que minha dureza seria muito útil na administração de tudo isso, pois que tinha o coração mole. E soubemos dividir bem as tarefas. Você fazia as contas – não sei fazer contas até hoje, acredita? – e o resto ficava nas minhas mãos. Só eu pra manter o cabresto curto em tantos empregados, trazê-los à obediência sem contestação e o serviço impecável.

Fizemos fortuna rápido, Inácio. Nós dois éramos perfeitos. Eu era perfeita pra você, era seu ponto de firmeza para que pudesse mergulhar em sua imaginação e gozar de seus devaneios. Sem Catarina por perto, o que seria de Inácio? Descobri tarde demais que Catarina sem Inácio era frágil, sem chão, sem o apoio para exercer minha autoridade. Tive de recriá-la e me tornei ainda mais insensível, cega a qualquer obstáculo que amainasse minha responsabilidade dobrada pela estância, nossas crianças e as famílias que dependiam de nós. Tornei-me amargor e solidão, ainda em tempos de casa cheia de filhos. Fui sozinha todo o tempo em que tive de me dedicar e sustentar o sonho que era nosso. Cobrei dos filhos a mesma postura, o mesmo comportamento, as mesmas preocupações, como se deles também fosse o dever de tocar em frente o projeto que era dos pais.

Mas o que estou dizendo? Agora quem devaneia sou eu, ora! Inácio está morto e sepultado há anos e não pode me ouvir. Sou uma velha decrépita, arruinada pela soberba e pelo remorso.

Não sei de mais. Só sei do que vejo: esta varanda, o jardim a perder de vista, as dezenas de árvores, o clarão alaranjado depois do por do sol atrás das colinas, as andorinhas bailando lá e cá, os empregados da lida externa se recolhendo aos poucos, sapos e grilos anunciando o início da noite. Sinto que o frio noturno se aproxima e começa a gelar minhas pernas, enrijecer ainda mais meus joelhos, que doem de me alucinar. Daqui a pouco precisarei dos remédios e logo Rosa vem trazê-los, junto com um chá e um par de meias, para em seguida me trocar de escuridão: leva-me daqui, acomoda-me na cama e acende as velas. Ficarei olhando os quatro lumes, até que se consumam e nada mais do dia reste.

Quem sabe hoje se apagarão as do quarto e se acenderão outras em torno do meu corpo amanhã. É o que espero. Todas as noites. Há dez anos.