Ela tem meu nome

Para Maria da Penha

Subia o tom da discussão, enquanto subiam os créditos do telejornal noturno na sala de TV, contígua ao salão de três ambientes. Pouco tempo de casados e já não se continham – um grito tentava superar o outro grito, até o bate-boca acabar em violência física. Um empurrão, uma rasteira, um soco no olho ou o cano do revólver roçando o pescoço. Então calava. Recolhia-se ao quarto ou um cômodo qualquer da grande casa construída durante o noivado. Havia de caber os filhos, os amigos dos filhos e, quem sabe, as famílias dos filhos, quando os recebessem nas férias.

Antes que o tempo lhe trouxesse o futuro sonhado, Maria da Penha se deu conta dos abusos que suportava, do isolamento ao qual fora submetida. A fúria lhe deu coragem, no momento em que Alcenor saltou em sua direção, braços erguidos e mãos abertas, sinalizando o objetivo de agarrar-lhe o pescoço. Com precisão e segurança jamais experimentadas, arrancou do chão a mesinha e atirou contra o marido, na direção do rosto. Atingiu-o de lado, deixando um pequeno rasgo na ponta da orelha. Correu, desesperada; puxava fundo o ar, prendia a respiração, soltavapara impulsionar as pernas e ganhar forças na fuga.

Maria da Penha atravessou a porta e alcançou a varanda; ainda era possível escutar a nota-pé da reportagem na voz do apresentador do telejornal, acompanhada pelos passos pesados de Alcenor no seu encalço.

– Ela tem meu nome!

Pisou o primeiro dos quatro degraus da escada. Quatro degraus e estaria na rua. Ali o tempo parou. Um único tiro nas costas e Maria da Penha caiu como se desmoronasse. Rosto espremido entre o piso e a grade do portão, consciente, não sangrava, não podia mover o corpo. Uma vertigem turvou-lhe a visão e a mente trouxeram de volta fragmentos da notícia no telejornal.

Não entende o que aconteceu. Ouviu o estampido, porém na hora não sentiu dor. Também não compreende por que começou a briga. Lembra apenas de Alcenor parar atrás dela de repente, vociferando com a boca cheia, sacudindo-lhe os ombros, no momento em que prestava atenção à notícia no telejornal.

– Meu nome! Ela tem meu nome!

Agora a dor; todas as dores num único lugar. Soava um gongo dentro da cabeça. Não percebeu o burburinho à frente de casa, onde os vizinhos curiosos assistiam pasmos à cena nunca exibida fora das residências do bairro de classe média alta. Um cão latiu, uivou insistentemente. Ela, enfim, cerrou os olhos. Não passou um filme na memória, mas novamente os fragmentos da notícia que vira há pouco no telejornal.

Maria da Penha nunca saberia que a outra Maria da Penha sobreviveu. Sobreviveu e lutou. Lutou em cima de uma cadeira de rodas, sangrou a alma. Por todas as Marias.

Conto publicado originalmente na Coletânea Mulher e Literatura – da poesia ao poder – Edição Especial dos 15 anos da Flipoços – 2020

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