Marcha para longe de tudo

Desistiu da indigência e saiu. Lenço amarrado à cabeça, chinelos de borracha e uma bolsinha minúscula com documento e uns trocados. Botou os pés fora de casa, sem intenção de voltar ao inferno diário do tráfico, da polícia arrombando portas e vidas, da pobreza sem esperança, do isolamento imposto pelo resto do mundo. Perdera o único filho para o crime e o marido de bala perdida. Não tinha mais nada, não queria mais nada. Sem rota, sem plano, ganhou a rua e andou.

Tiroteio deixa um morto e cinco feridos. Três adolescentes são abatidos durante incursão de policiais no Morro da Piedade. Emília anda, sem interromper os passos. Segue em direção ao que chama “longe de tudo”. Um lugar em que jamais esteve, mas imagina e procura fora e dentro de si, enquanto se locomove rígida e segura. Grupo fortemente armado realiza falsa blitz e rouba carros para invadir a comunidade. Sua alma, sim, conhece a lonjura que busca, como se em sonho já a visitasse, como se a trouxesse de outras dimensões de si mesma.

Emília aperta a passada pois necessita se afastar do tormento que deixara para trás. Crê no fim da guerra, na libertação, nunca mais medo e sofrimento. Sem prever, avança no rumo das montanhas e sobe, agora devagar. A polícia ocupa todos acessos e prende cinco traficantes. Encontra sob as árvores um veio d’água e se abaixa para matar a sede. Está exausta. Molha o rosto, as têmporas, a nuca. Olha adiante e vislumbra o caminho. Quer encontrar o que nunca viu, o que não sabe e não conhece. Retoma sua marcha à beira da estrada, os tornozelos tocando musgos crescidos entre galhos úmidos à sombra da mata. Grupo da polícia especial invade casa e mata uma mulher e dois filhos pequenos com tiros de fuzil.

Sem ver dia nem noite, experimenta a liberdade de apenas ser, enche os pulmões e expira seus temores. O ruído do repuxo atrai Emília, que transpõe o limite da margem e adentra a floresta. Raios de sol dançam entre as frestas das copas, salpicando a água do riacho de pequenos diamantes de luz. Emília se ajoelha. Chora e ri. Desconhece a sensação estranha, ao mesmo tempo serena. Se emociona e se entrega.

Moradores do Morro da Piedade não têm paz. Nesta madrugada um incêndio destruiu todos os barracos do lado leste da comunidade. Até agora são trinta e duas mortes e centenas de feridos. Há muita gente desamparada sem saber para onde ir.

Texto publicado originalmente na Coletânea Internacional Mulherio das Letras pela Paz.

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