Rasgada

As carreiras são mal preparadas pelas mãos trêmulas de Carolina. Divide o conteúdo de um pino em quatro, ali mesmo, no beco, em cima de um carro. Uma cheirada e mais um gole na garrafa de vodca barata que está quase no fim. Gastara boa parte do dinheiro dos serviços da semana num branco mais caro. Não estava a fim de se contentar com o efeito curto de pó vagabundo. Queria sumir de si. Manda as quatro pra dentro, mais um trago na vodca e com dois passos cambaleantes dá com as costas no muro. Emite um gemido abafado, ao mesmo tempo em que passa os braços em torno do tronco, como num abraço a si. Despreparada para a brisa fria da noite, sente o dorso gelar ao contato com a parede alta do colégio. Os membros desnudos arrepiam, Carolina se deixa escorregar, de corpo mole. Chão.

Não era esse o efeito esperado. Queria esquecer de novo, mas a euforia não veio. Vê de longe o cara virando a esquina devagar, indo na sua direção; não quer mais. A imagem do moleque atravessa sua retina e à leva de volta a outro tempo, naqueles dias que pareciam jamais ter fim. Ela o olha como naquela fresta. Carolina é tomada por um torpor, enquanto experimenta pontadas na cabeça. Não quero… não, desta vez, não.

Ajoelhada no piso de terra batida, naquele lugar escuro, meio de lado, com uma das mãos apoiada no chão, passa parte dos dias ali, com a cabeça meio tombada, de modo a encaixar o olho no buraco enviesado da madeira velha. O máximo de mundo que vira desde os treze anos era o que depois passou a chamar de “antessala do inferno”: um ambiente com ar de cozinha, uma bancada grande e muito velha no meio, onde Carolina podia ver os pés dele entrando por uma porta estreita logo atrás. Havia sempre vasilhas sujas espalhadas, canecas suspensas que jamais saíam do lugar. Não eram as mesmas em que ele lhe levava água, café, sopa…

O rapaz está ali, mas não avança. Encosta num carro, à distância, acende um cigarro. Carolina olha, pisca para focar a visão. Novamente pela greta ela o vê: está parado próximo a um armário antigo cheio de tralhas: peças de carro, ferramentas, panos rotos, tachos, botinas. A luz é precária, porém ela já sabe quais serão os próximos movimentos. Está enojada, cansada, esgotada. Ele mastiga algo lentamente e move o pescoço na direção de onde ela está. Carolina se abaixa, se arrasta e se encolhe. Já são sete anos e ela não acostuma – quem se acostumaria? Sente medo a cada vez que ele aparece. Não sabe mais nada de seus dias de infância, do rosto cândido da mãe, das brincadeiras com os irmãos mais novos, nem da sua última festa de aniversário, quando fez de treze.

Puxa o ar cada vez com mais força, parece não entrar nada nos pulmões, vai dando um aperto no peito. O coração acelera e os pés e as mãos perdem calor. Carolina estremece e vira mais um gole da vodca. A maior parte escorre pelos cantos da boca, que ela enxuga com o antebraço. Carolina solta o corpo e deixa a bad dominar de vez. A viela em que tantas vezes se entregara às orgias com os moleques estava silenciosa agora. Perdera a conta das madrugadas em que se drogava até perder o juízo e no fundo do beco sem saída era abusada. Desejava ser abusada. Avisava à rapaziada que estaria lá, procurava por eles, esperava, queria, se entregava, depois chorava. Voltava pro cortiço trôpega, suja, deprimida.

O corpo de Carolina parece se mover sozinho, sente pavor, mas não perde o ímpeto, quer se levantar, a mente não para, cai de novo. A consciência falha, pensamentos se sobrepõem uns aos outros, já não tem controle sobre os próprios membros. Não precisa ver pela fresta que ele vem em direção à pesada peça de madeira que fez de porta; sua pisada é lenta, porém firme. As botas batem forte no chão, como a amedrontar Carolina de propósito. A porta é arrastada. Ela se afasta, sentada no piso com as pernas juntas, e se encosta no canto da parede. Tem os olhos arregalados, os cabelos lhe caem sobre o rosto, diz não.

O rapaz termina o cigarro e segue em frente, para perto de Carolina. Arma um sorriso cínico, abre o casaco, relaxa um braço e com o outro lhe dá um aceno. Ela mal o vê, não lhe reconhece a face, se contorce para tentar levantar e de novo as pernas desobedecem, aperta as costas contra ao muro. A cabeça dói ainda mais, Carolina leva as mãos às têmporas e vira o pescoço de um lado para outro. Diz não repetidas vezes. Ele se aproxima. A mente parece girar em looping, em alta velocidade, o quarto vazio, o medo da solidão, o abandono, o horror, o ódio, as tentativas de fuga, a fuga… Está cada vez mais próximo, não diz nada, sabe o que quer fazer e ela também sabe. Ele se abaixa, toca os cabelos dela.

O cômodo é escuro e ela pode apenas ver seu vulto, sente o cheiro forte da loção, a mesma fragrância de sempre. O asco lhe aperta a garganta. Ele respira já bem perto e ela sente o calor do ar que vem dele. Não, de novo não… O rapaz tira o casaco e joga no chão, desabotoa o fecho da calça lentamente, sem tirar o riso cínico da face. O corpo de Carolina se debate, involuntariamente, não, por favor, está febril, não… eu não quero… O peito infla em movimentos rápidos, num esforço quase inútil de respirar… não faz isso… Não! Para! Por favor, para! Para, pai! Me mata, me mata! Por favor, pai, me mata, mas não faz isso de novo comigo. Me mata.

Convulsão.

Overdose.

Conto publicado originalmente na coletânea “Sobre Frestas e Janelas”, editado pela comunidade Carreira Literária – Rio de Janeiro/2017.