Regaço perverso

Ia àquele consultório toda semana. Era uma obrigação imposta pela família “conversar com o doutor Gilson”, como se aquele palavrório sem sentido fosse me fazer mudar de rumo em plena crise de rebeldia-pós-casamento-precoce-mal-feito-recém-terminado.

A intuição nunca me enganou; a única pessoa em casa que tinha restrições ao doutor era eu. Ninguém sabia, mas eu passava longe daquele endeusamento, da idolatria e da confiança exagerada. O “bonzinho”, amigo da minha irmã. A cara dele não passava coisa boa; os olhos transmitiam algo estranho que a compreensão não alcançava. Eu não gostava. Apenas isso.

Até que um dia aconteceu. O inesperado esperado. Ele se mostrou de verdade; ou seja, um escroque.

Eu chorava sem trégua. A vida, aos dezenove anos, virada do avesso. A família, sem entender o que ocorria com minha cabeça, empurrava-me para que aquele homem vil fizesse o papel de psicanalista, me ouvisse e dissesse coisas que me conduzissem ao “caminho certo”. Era educado, a voz baixa e suave. Falava manso como qualquer ser bondoso ou que se faça de. O tom da voz saía meio rouco. Recebia-me de modo cortês, com abraço, dois beijos, sentava-se atrás da mesa e eu à frente, como numa consulta convencional.

Só que nesse dia minha fragilidade estava no ápice; não conseguia dizer nada; só chorava. Ele se levantou, se aproximou e tocou meu ombro.

— Vem cá. Você está precisando de colo.

Eu, boba, ingênua — como minha criação me fez ser —, acreditei e aceitei o falso acolhimento. Ele recostou na maca e me puxou. Abraçou-me forte, inicialmente como um pai carinhoso. De repente, as mãos pesadas começaram a alisar minhas costas, de cima a baixo. Tensionei o corpo. Estranhamento. No mesmo instante em que respirou quente no meu pescoço — abaixo da orelha —, as mãos desceram um pouco mais e pressionaram levemente meus quadris. Fiquei em choque. Primeiro, sem acreditar no que estava acontecendo e depois, sem saber como reagir. Afinal, ele era o médico da família, grande amigo, o “bonzinho”, conhecia-me desde criança.

Quando as mãos dele pressionaram mais forte, puxando-me ao seu encontro, senti a realidade que não queria. Afastei-me e então vi, sob a calça branca de tecido fino, quase transparecer o pênis ereto. Apartei-me imediatamente, peguei a bolsa pendurada na cadeira e abri a porta. Tive a educação de agradecer pela ajuda e de dar um tchau. Não esqueço a expressão decepcionada, do tesão em máxima potência, interrompido.

Saí desnorteada pelo corredor do hospital.

Não havia em quem confiar, com quem conversar. A família não alcançava o que ocorria comigo naquela idade, não era capaz de lidar com uma adolescência na sua forma mais problemática, e entregara tais responsabilidades a outro. Eu precisava crer nos meus e então, embora toda a confusão mental do momento, obedecia à ordem “vá conversar com o doutor”.

Perdida. Mais que perdida: fiquei vazia.

Saí do hospital e parei na calçada. Não era capaz de me concentrar no que precisava fazer. Precisava ir embora. Pra onde? Pra casa? Que casa? Onde é minha casa? Quem vai me acolher agora? Pior: não havia a menor chance de revelar o que acontecera naquele consultório. Quem acreditaria? Para minha família, era Deus no céu e Gilson na Terra.

Sem mais uma alma pra pedir socorro, a única atitude que poderia tomar era voltar pra casa. Virei o corpo, avistei a delegacia de polícia. O ponto de ônibus era ao lado. Segui em frente, atravessei a rua; passava pelas pessoas sem vê-las. Estava tonta, a mente em turbilhão, não pensava de forma coerente, parecia alucinada. A visão daquele pênis ereto quase a saltar pelo fino tecido me dava ódio, asco. Queria vomitar.

Parei em frente à porta da delegacia; as lágrimas saltaram, grossas. Olhei lá pra dentro, baixei a cabeça e segui. Já no ponto de ônibus sentei numa grande pedra, velha conhecida, e não me segurei. Chorei. Chorei muito. Solucei a ponto de chamar a atenção de outras pessoas.

— Moça, você tá passando mal? Precisa de ajuda?

Agradeci. Enxuguei o rosto. Disse que estava triste, de luto. Eles não sabiam que o luto era por mim. Chegou o ônibus. Os trinta minutos do trajeto se tornaram a viagem mais longa da minha vida.

Jamais precisarei fazer esforço para lembrar daquela manhã, naquele hospital, com aquele homem que aprendemos a chamar de médico e que pra mim não passou de mais um canalha que a sociedade fabricou com esmero. Apesar do nevoeiro pairando sobre a maioria de minhas memórias de adolescência, há fatos que marcam mais que nascimento e morte.

Trinta anos se passaram e pela primeira vez contei a alguém o que ocorrera. Foi uma catarse.

Expus a raiva que senti da minha irmã e da minha mãe, desabafei o quanto de mágoa ainda carregava por terem me empurrado para o colo daquele médico escroto. Porém, os piores sentimentos que saíam do fundo do inconsciente eram por ele. Horror, nojo, ódio. Lembrei-me do rosto, da língua presa, da voz rouca, e senti engulhos. Meu estômago se contorceu.

Na sessão com a terapeuta tudo isso saiu de uma só vez, uma fala regada a muito choro e tristeza profunda. Saber que hoje estaria a centenas de quilômetros não me satisfazia. Por outro lado, queria estar frente a frente mais uma vez para dizer tudo que estava engasgado. Na verdade, preferia saber-lhe morto. Nunca desejara isso a ninguém, no entanto, morto é acabado, e assim talvez me sentisse finalmente livre do passado repugnante.

O processo de matar alguém dentro da própria mente não ocorre em minutos, diante do psicanalista. É morte lenta, como ministrar doses mínimas de veneno, diariamente, vê-lo mirrar aos poucos. A cada dia imaginava matando-o de um modo diferente: por enforcamento, tiro, facada, empurrado de uma sacada do 21º andar, afogado, envenenado, surrado, capado. E me comprazia.

Um dia, no set terapêutico:

— Matei! Está morto, o maldito! E eu mesma o sepultei pelado, branquelo, pálido, seco, sem sangue no corpo, sem caixão. Joguei-o no fundo de uma vala e deitei terra por cima, até não ver mais aquela cara e cabelos ruços. Eu matei! Está enterrado!

Meu corpo ficou leve, a mente livre, o passado apodrecendo embaixo do chão frio no meio do nada, e eu liberta da lembrança da roupa branca com uma ereção quase a atravessar a calça transparente. Está morto.

Cheguei em casa e o telefone tocou. Era minha mãe.

— O doutor Gilson morreu hoje. Soubemos agora. Definhou lentamente de uma doença desconhecida, sufocou sozinho e apagou de vez.

Jamais a vizinhança ouvira uma gargalhada tão alta, que chegou aos ouvidos de gente de todos os cantos, com ecos em todas as partes.