Narcisismo espiritual

Eu faço três meditações por dia. Passo meia hora olhando dentro de mim. Aprendi a conhecer minha respiração e a respirar cada vez melhor.

Com a prática da meditação e de olhar pro meu interior, adquiri autoconhecimento. Como é bom me conhecer!

Meus chacras estão alinhados e não permito que se desalinhem.

Desenvolvi os bons sentimentos, os bons desejos, mantenho meus pensamentos elevados.

Eu acendo incensos em todos os cômodos da minha casa, para que as fragrâncias espantem as consciências negativas que porventura passem por aqui.

Diante dos meus altares, me conecto com energias espirituais e com elas eu converso, me sinto protegido, seguro.

Eu estou todo o tempo conectado com o meu divino, meu corpo e meu espírito são cada vez mais leves.

Eu me vigio permanentemente, tento corrigir os meus erros, ou o que penso que sejam os meus erros.

A tudo eu digo gratidão; a todos eu desejo luz.

Quando me deito à noite, eu-corpo repouso e eu-espírito viajo e danço em harmonia com o cosmos.

Eu estou sempre equilibrado, porque eu busquei a minha espiritualidade, eu busquei profundamente esse encontro com meu eu espiritual.

Eu estou em paz.

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Por isso, o mundo a minha volta não me interessa.

Eu não quero saber do mundo.

Eu não quero saber do país.

Eu não quero saber de política.

Eu não quero saber.

Se eu souber dessas coisas, se eu me der conta de tudo o que acontece ao meu redor, eu perco a minha paz, eu perco a minha serenidade e meu equilíbrio espiritual.

Eu prefiro não saber que há 17 milhões de pessoas passando fome no país.

Eu prefiro não saber que uma mulher morreu queimada, após tentar cozinhar com álcool, porque não tinha dinheiro pra comprar gás.

Eu prefiro não saber que existe racismo no Brasil; não quero enfrentar a realidade da população negra, que permanece alvo de assassinatos diários.

Eu prefiro esquecer que meu país é o que mais mata LGBTQIA+ no mundo.

Eu prefiro esquecer que a cada seis horas e meia morre uma mulher vítima de feminicídio.

Eu prefiro esquecer que a cada duas horas, ocorre uma denúncia de estupro de uma menina menor de 14 anos.

Assim como não quero nem imaginar que existe um genocídio em curso no meu país, em que mais de 600 mil pessoas morrerem por descaso; até aproveitei o isolamento da pandemia pra me trancar em casa e orar, mas sem acompanhar as notícias (isso nunca!).

Porque não posso perder a minha paz.

Eu não preciso saber que a gasolina está mais de 7,00, pois nem tenho carro.

Eu não preciso saber que há mais de 14 milhões de desempregados. Já sou aposentado e risco de desemprego não me apavora mais.

Eu não preciso saber que poderia ajudar de alguma forma, que aqui na minha cidade, bem perto de mim, há vários movimentos pedindo ajuda pra pagar aluguel e dar de comer a muitas famílias que estão na miséria. Já tem bastante gente ajudando, né?

Eu não posso me aproximar de nada disso, senão minha espiritualidade vai ser abalada, então eu prefiro ficar aqui quietinha, diante dos meus altares, conectada com meu divino, enquanto o mundo a minha volta pode desabar, enquanto lá fora o país pode afundar, fora de mim, enquanto milhares de pessoas devem estar sofrendo por carências materiais, de saúde, de casa, de comida, de acolhimento.

Eu não tenho nada a ver com isso. Importante é garantir que meu eu espiritual se mantenha como está.

Eu trabalhei duro pela minha reforma íntima, cresci espiritualmente, investi minha vida em desenvolvimento pessoal, tantas horas e horas e dias e semanas olhando pra dentro…

Se eu prestar atenção em tudo o que acontece, vou desarmonizar meus chacras, posso surtar de preocupações, serei alcançado pelas energias negativas que vêm dessas notícias todas, o que vai ser de mim?

Então, vou ficando por aqui, quietinho no meu canto, espiritualizado, leve, quase levitando, em harmonia com o universo. Nada vai tirar a paz que eu conquistei.

Namastê. Gratiluz.

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