Ouvi a voz do meu pai

O silêncio da tarde de sábado no bairro residencial permitia aos ouvidos apenas o farfalhar das folhas das árvores e o tilintar das contas do mensageiro dos ventos na varanda. Quieta no canto de sempre no sofá da sala, folheava uma revista, após saborear um café. Houve um breve burburinho na rua – ou no ar, no tempo –, um conjunto de ruídos não identificáveis. E então ouvi a voz do meu pai.

Deitei a revista ao colo e suspirei. Ergui a cabeça, agucei a escuta. Passou. Uma única vez, um único som.

– O que houve?

– Ouvi a voz do meu pai.

O silêncio retomou seu lugar e minha mente acionou o estado remoto.

Meu pai era um homem de muitas vozes. A primeira e mais destacada na memória é a voz do “não pode!”. Forte, potente, presente. Reverberava pela casa quando a impostava em dois, três tons acima. Quando preferia falar baixo, o som saía como da boca de um monstro da caverna. Gritando ou sussurrando, o estremecimento que causava era igual. A frase “Não pode!”, vinda dele e da mãe com tamanha frequência, ainda resiste em abandonar o inconsciente nas sessões semanais de psicanálise.

Pandeirista, tocava em grupo de seresta, e com as mãos certeiras arrancava vozes do instrumento que escolheu para se expressar. E também cantava. Timbre agudo, afinadíssimo, me paralisava de admiração toda vez que o escutava, pois pela música exteriorizava algo que não me dava a conhecer no dia a dia. Coisa de alma, sei lá. Só não conseguia chegar até o fim da letra de “Chão de Estrelas”. Desabava num choro no verso “nossas roupas comuns dependuradas” e não ia em frente.

Pensava e cuidava de si com esmero, um tanto autocentrado, provocando vozes em torno a resmungar entredentes um “egoísta”, em referência ao seu jeitão “meu umbigo é o centro do mundo”. Pois foi a voz do olhar para dentro que me ensinou o “amai ao próximo como a ti mesmo” ou “você não será capaz de amar o outro, se não se amar primeiro”, outro tema recorrente no set terapêutico. Aliás, o que seria dos psicanalistas, não fosse o que vem de pai e mãe? (dizem que principalmente as mães, mas o assunto aqui é pai).

Ouço a voz do meu pai em sonhos. Conversa longamente comigo, diz coisas que me acostumei a ouvir, reforça afirmações, sorri, porém na manhã seguinte não lembro nada. Fico com a sensação boa de um papo carinhoso. Nesses encontros oníricos a voz é mansa, suave; ele é quase didático. Tem uma energia professoral, amaciada por brandura, aconchego e acolhimento. O oposto da voz que escutei a vida toda, até o dia em que encerrou sua passagem pelas bandas de cá.

Sentada no chão com os brinquedos, era a companhia silente do pai severo, reinando em sua cadeira atrás do jornal aberto. Não gostava de incômodo e suas ordens e preferências não eram contrariadas. No entanto foi ao lado dele que adquiri o gosto pela crônica. Lia os textos pra mim em voz alta e tecia alguns comentários. Dava risadas com a coluna “Avesso da Vida”, escrita por Léo Montenegro em O Dia. Mal conseguia pronunciar os nomes esdrúxulos das personagens, como Orquelino, Arnobaldo, Bregonildes, de tanto que ria. Pela voz do meu pai cheguei ao prazer de transformar em conversa escrita o que vivo e observo. Não é pouca coisa. Ouvi-lo desperta e de olhos bem abertos pode ter sido um chamado do inconsciente para registrar essas lembranças. Talvez seja o “Não pode” se transmutando em “Vá em frente!”.

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