Sem preconceito, mas vai que…

Cheguei para a entrevista atrasada, correndo, bufando, e a surpresa foi maior ao encontrar o prefeito deitado dentro do carro, o corpo estirado nas duas poltronas da frente, cabeça para fora, de óculos escuros, a mirar o céu. Mais calmo impossível. E nós, trinta minutos depois da hora marcada, constrangidos.

– Bom dia, prefeito, desculpe pela demora.

– Problema nenhum. Estava aqui admirando o voo de um urubu.

– (?)

– Minha mãe sempre dizia que quando a gente vê um urubu voando bem alto e sozinho, é sinal de notícia boa.

Oi?!

As informações que recebemos sobre essa ave é que se trata de um bicho nojento, asqueroso, nocivo, que come carniça. É feio, tem andar coxo, esquisito, chega a causar certo horror às vezes. Jamais imaginaria o contrário, nem por superstição.

O encontro com o prefeito aconteceu há quase trinta anos e, desde então, passei a observar melhor os urubus. Para reverter a rejeição, procurei saber a respeito do pobre coitado, excluído de qualquer demonstração de apreço, por causa de seus hábitos não convencionais, sob o ponto de vista humano.

O que gera repugnância no comportamento do urubu é sua preferência por carnes em estado de putrefação. Quando não encontra, opta pela caça de animais menores, como alguns roedores, sapos e lagartos. Porém, exatamente por comer animais mortos, é considerado necessário, até indispensável, para garantir o equilíbrio ecológico, livrando o ambiente de doenças facilmente dissemináveis. Para piorar a situação do desventurado, ele não pode cantar, pois não possui órgão vocal específico. Portanto, grasna.

Destituída do preconceito, veio a compaixão. Todas as vezes em que vejo um urubu, tenho ímpeto de parar para apreciar. Pude conhecer um de perto num sítio, onde rolava um churrasco. A proprietária do local tinha um urubu de estimação. Caíra no quintal quando filhote; foi tratado e alimentado, ficou. Claro que a única pessoa na festa que não sentiu repugnância fui eu (confesso um medinho de me aproximar).

Recentemente li uma história em que o personagem narra sua própria morte, atacado por um bando de urubus que invadem o apartamento. A sequência é horripilante, devido aos pormenores do banquete. É outro ponto a favor da ojeriza contra o animal já tão enjeitado – o autor não poderia, por exemplo, falar em corujas? Elas também comem carne.

E após tantos anos de reforma interior, treinando meu carinhoso olhar para os urubus, eis o inesperado: ao volante, a caminho do trabalho, avisto ao longe um solitário lá nas alturas. “Opa! Que notícia virá por aí?” Logo que me indaguei, ele foi baixando a altitude, vindo em minha direção. Em questão de segundos estava na frente do carro, forçando as asas para trás, na tentativa de parar e não conseguiu. Entrou embaixo do pneu dianteiro esquerdo; escutei (ou senti) um “crec” e ainda pude ver pelo retrovisor o infeliz estraçalhado na pista. Não contive o remorso: “Eu matei o urubuuuu! Eu matei o urubuuuuuuuu! Meu Deus, eu matei o urubu.”. Chorei de dó, no entanto não deixei de cismar com um provável mau augúrio; afinal, se o urubu voando alto é bom presságio, prefiro nem pensar no que possa significar esse mesmo urubu sendo assassinado por mim.

Publicada originalmente em 2016, no antigo blog da autora.

 

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