Zanahoria – ¿Qué es esto?

 

O taxista perguntou se Buenos Aires teria alguma semelhança com o Rio de Janeiro. Respondi que não, exceto pelo fato de serem grandes metrópoles. As edificações em Buenos Aires são austeras, pesadas, imponentes. Também não encontrei a ‘caliência’ do Rio; para ver um sorriso de um portenho foi preciso arrancá-lo.

Não fui a todos os lugares que pretendia, não aproveitei os programas noturnos. Poucos dias, pouco dinheiro e o que deu foi o que deu. Não faltaram os suspiros de admiração e o deslumbramento natural de pobre fora do país pela primeira vez, conhecer gente e paragens diferentes, ouvir uma língua diversa ao redor. Passei célere pela capital argentina; foram cinco dias, sendo que no último tínhamos apenas a manhã e choveu. Muito.

Engano meu supor que city tour seria um saco. Na verdade, o serviço incluído no pacote é um adianto: facilita a definição de “quero voltar aqui” ou “aqui já deu”. E foi uma diversão à parte o entusiasmo do guia em informar que “neste bairro os apartamentos custam um milhão de dólares”.

Há locais em que senti vontade de ficar e ir ficando. A Catedral Metropolitana foi um deles. Abarrotada de turistas, guias tagarelando sem trégua, e eu lá, distraída nas minhas viagens internas, encantada com os florais do piso em mosaico, a cúpula na nave central, o mausoléu de José de San Martin, “guerrero de la independencia argentina”. Tudo damasiado ostentoso. Atrasei dez minutos para retornar ao micro-ônibus.

Queria ficar ficando na praça da Recoleta. Bairro de rico, feira de artesanato para clientela com grana (fiquei bastante frustrada), público majoritariamente branco arrumadinho, em seu passeio dominical vespertino. Por outro lado, o local é aprazível, amplo, aberto, muitas árvores, brisa fresca, músico de rua e cachorros correndo pra todo lado nos gramados. É no cemitério do bairro que estão os restos mortais de Evita Peron, mas não me animei a visitar túmulo. Já me esquivo de entrar em cemitério e não ando bem emocionalmente para arriscar.

Por fim, se fosse possível, passaria uma noite inteira na Puente de La Mujer, no Puerto Madero. Isso mesmo, na ponte, em cima dela, no meio, sentada no chão, como tantos por ali, papeando, ou namorando, curtindo o vento da noite que vem do Rio da Prata. Nada de especial; só meu velho desejo de parar para sentir e contemplar.

Incluiria Caminito nessa lista, não fosse a melancolia que me provocou a memória dessa parte da cidade. Um cantinho bonito pelo colorido das construções, acolhedor, com as tradicionais lojinhas de artesanato convidativas, bares, restaurantes. Contudo, a história é triste. A pobreza, o abandono, a indigência humana formaram o povoado. Como sempre penso em gente, não me senti confortável diante das várias casinhas, construídas com restos do que traziam do porto, pintadas com sobras de tintas (por isso o colorido), onde se amontoava uma pequena multidão por moradia. Considerar o sofrimento vivido ali dentro deu um nó na garganta. Sou dessas. Não sei passar ao largo da história e desfrutar de um prazer, com os olhos grudados no meu umbigo.

Digressão semelhante me ocorreu durante o show de tango (item obrigatório no roteiro em Buenos Aires). Casa lotada de turistas com a noite garantida pelos variados pacotes, como o meu. Após o jantar, apagam-se as luzes e apreciamos um espetáculo. Quatro casais de bailarinos, dois cantores – um homem e uma mulher – uma banda composta por piano, baixo, violão, bandoneón e violino. Lindo! Aplaudi efusivamente, gritei “Bravo!”.

No entanto, não pude não matutar. Esses estabelecimentos funcionam a semana inteira; os bailarinos se apresentam diariamente. É claro que devem atuar por gosto – quero acreditar que trabalhar com arte seja uma escolha, embora uma opção pela dureza, em um país economicamente precário, assim como o Brasil. Quanto será que ganham para dançar, cantar e tocar pra turista todo dia? Entrei na expressão de cada um deles para tentar adivinhar que atividades adicionais exerceriam para sobreviver. Sorriem, bailam lindamente. E durante o dia? O que deve fazer na ‘vida real’ a cantora de vestido vermelho? O que mais faz que lhe garanta a subsistência, além da merreca semanal ou mensal que tira cantando tango? Quanto de aflição não haverá por trás dos corpos que deslizam em cima do palco?

No trajeto para o hotel, no micro-ônibus, forjei na mente as imagens dos bailarinos e músicos retornando para suas casas, quem sabe de jeans, camiseta, blusão de frio, sem maquiagem, exaustos, noite encerrada, missão cumprida. Quantos deles podem ter se apresentado ansiosos por acabar logo, pois precisavam retornar rápido para algo ou alguém? Quantos com pressa de chegar e dormir, pois teriam de pegar no batente de manhã bem cedo? Qual daquelas mulheres poderia ser mãe, quem sabe de um bebê, ou que lutasse para sustentar filhos sozinha e botar comida dentro de casa?

Aliás, a comida: saborosa em todos os restaurantes por que passei, porém extremamente pesada para quem está habituada a alimento leve e saudável, sem carne. Meu intestino voltou ao Brasil em vigoroso protesto. Decidir pelo que comer rendeu momentos engraçados. Um deles, num boteco que oferece pratos executivos, rápidos (sqn), com as tradicionais milanesas (fritura, fritura, fritura! Meu jisuisinho!). Optei por purê de batata como guarnição e como não abro mão da salada (meu corpo precisa de mato!), lá fui encarar o cardápio portenho. Deveria escolher três elementos e uma das opções era zanahoria. Perguntei à garçonete “¿Qué es esto?” e ela, sem saber como explicar, foi até o balcão e pediu ajuda ao cozinheiro. Esse esticou o braço, gritou um ‘señora!’ bem alto e exibiu na mão uma cenoura. Ah, tá: “Quero lechuga (já tinha aprendido que era alface!), com tomate e zanahoria”.

Resmunguei de saudades de casa, do meu marido, da minha cama, do meu banheiro. Cinco dias para conhecer Buenos Aires é pouco, mas o suficiente para exaurir quem é afeito à reclusão. Ficaram para trás os bosques, a grande livraria, a igreja russa (fiquei curiosa pra conhecer), o passeio de barco no Rio Tigre, a travessia do Rio da Prata para Colônia, no Uruguai, fruir na noite, conversar – seria um bom papo, por exemplo, com ao menos uma das senhorinhas que por vezes observei almoçando solitárias.

Voltei pra casa com as boas risadas que dei de mim mesma pelas tentativas, erros e acertos na comunicação com os portenhos; da minha própria cara de “putz!” ao abrir um cardápio; de errar ao pagar a conta, por confundir as notas de pesos e o garçom ter de sair no meu encalço; por não saber fazer contas e ter de fazer contas o dia inteiro; por ter de dizer a minha amiga “corre!” a cada vez que o elevador do hotel abria a porta, pois mal dá tempo de entrar dois e logo fecha; do sanduíche de miga; por nunca lembrar o nome do restaurante Alameda e dizer Abelardo ou Almodóvar; pela minha profunda raiva do chuveiro – o que é aquilo?

Ainda evoco as pessoas: o que estará fazendo agora o recepcionista do hotel, que correu atrás de mim, no mercadinho da rua, para me ajudar com dinheiro trocado; o que estará fazendo o garçom bonitão do Café Tortoni; o que estará fazendo o garçom do Esquina Homero Manzi, que achou engraçado quando perguntamos se o chopp era servido no caneco e ele não entendeu “caneco de chopp”; o que estará fazendo aquele cara esquisito de chapéu vermelho, sentado no meio da Feira de Antiguidades de San Telmo, fumando charuto; o que estarão fazendo os milhares de cidadãos que trafegam diariamente no trem que vai e volta do Tigre.

Pessoas. Penso em pessoas. Lembro de pessoas.

 

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