Gente esquecida

Sobre o livro “A vida que ninguém vê”, de Eliane Brum

Contei esta história dias atrás e vou repetir aqui: recém-formada, primeiros anos de profissão, ouvi de um jornalista próximo que “gente comum não interessa a ninguém, inclusive não vende jornal”. A afirmação veio em resposta ao meu desejo de escrever sobre a gente anônima, pinçada do meio do povo, aquele velhinho que passa os dias sentado na porta da rua, do bairro da periferia. Minha vontade era ouvir as histórias dessas pessoas. Balde de água fria. Cidade do interior, jornalismo de interior, conveniências de interior. Quem é que ia querer saber de gente esquecida? Pauta boa aqui era politiquice, politicagem e afins. Bora lá fazer o bom e velho jornalismo da produção e promoção de invisibilidade, que o importante é vender jornal.

Trinta anos se passaram e só agora me dei a oportunidade de ler “A vida que ninguém vê” (Arquipélago, 2006), da jornalista Eliane Brum, que reúne os textos da coluna de mesmo nome que ela escreveu no jornal Zero Hora. A proposta da coluna veio do diretor de redação Marcelo Rech que, segundo ele mesmo, não pensaria em outro repórter pra assumir a tarefa: “extrair crônicas reais de pessoas comuns e situações corriqueiras, em busca de inovações e inovadores para marcar a história do jornalismo brasileiro”.

O ano era 1998. Foram quarenta e seis colunas em onze meses. A invisibilidade que não vendia jornal rendeu à Eliane Brum o Prêmio Esso de Jornalismo – Regional Sul, em 1999. O livro, lançado em 2006, recebeu o Prêmio Jabuti de melhor livro-reportagem, em 2007. Por que cito essas datas? Porque passei pelo jornalismo, como repórter, nessa época. Porque foi numa noite dos anos 90 que ouvi de um jornalista experiente que gente comum não interessava a ninguém. E a frase, curta e grossa, entrou pelos meus ouvidos como uma ordem, que foi cumprida com rigor (já fui muito competente em cumprir mando dos outros sobre meus desejos). Pensando bem, a que jornal desta região do interior do Estado do Rio interessariam histórias sobre gente que ninguém vê? Talvez fosse uma frustração tremenda se eu desobedecesse a ordem e tentasse. A não ser que fosse embora daqui (poderia ter sido muito bom isso). Só que Eliane Brum valoriza “o cachorro que morde o homem”, não o contrário, como os antigos colegas costumam exemplificar uma boa pauta, a do “homem que morde o cachorro”, e esfregou na cara do jornalismo brasileiro que gente comum rende prêmio cobiçado pela “elite sabichona” que até hoje povoa as redações (ou home offices) da imprensa nacional.

O capitalismo criou a invisibilidade, a sociedade capitalista a aceita e a imprensa protetora do capital a alimenta. Essa equação é repetida há anos e para muitos “é desse jeito”. Acostumaram-se a desejar mais, ter mais, trabalhar mais pra ter mais, morar melhor, viajar mais, tomar mais remédios, dormir menos e quem não vive essa vidinha assim-assim não “chegou lá” por falta de esforço. Essa “gente que não se esforça” foi ficando cada vez mais escondida, lixo humano empurrado pra longe (vide “Vidas desperdiçadas”, do Bauman), invisível e, “Pô, cara, normal, né? Uns chegam lá e outros, não, fazer o quê?” E “desse jeito”, os que “não chegam lá” deixam de existir, não fazem parte, não pertencem, não merecem, suas vidas (vidas?) não interessam à imprensa.

Lá. Onde é lá? É ali, na padaria, no hipermercado, onde o capitalismo determina que a vida tem que seguir, mesmo com um corpo estirado no chão, escancarando que a vida é um sopro, que amanhã qualquer um de nós pode acabar no piso frio de um estabelecimento comercial, enquanto outros tomam café ou escolhem os ingredientes que vão levar pro jantar.

“Não há nada mais triste que enterro de pobre porque não há nada pior que morrer de favor, não há nada mais brutal do que não ter de seu nem o espaço da morte. Depois de uma vida sem lugar, não ter lugar pra morrer. Depois de uma vida sem posse, não possuir nem os sete palmos de chão da morte. A tragédia suprema do pobre é que nem com a morte escapa da vida.”

O trecho acima é do texto “Enterro de pobre”, no qual Eliane Brum relata a tristeza de um homem para enterrar seu bebê, natimorto por negligência médica por onde a mãe passou antes de perder o filho. Não deixaram que ele visse a criança; também não lhe foi permitido vestir o bebezinho com a roupinha que comprou por sete reais. Tudo isso aconteceu enquanto os dois outros filhos estavam internados, cada um em um hospital. Num deles, a mulher acompanhava a filha quando sentiu o sangue descer pelas pernas. A enfermeira disse que voltasse pra casa. Na manhã seguinte, foram à Casa de Saúde, mas não foram atendidos. Só chamando a polícia conseguiram que fossem levados a um hospital da capital. Tarde demais.

Pessoas invisíveis. Pessoas sem importância. Vidas que não merecem atenção. Histórias que ninguém conhece, nem vai conhecer, porque “quem é que se interessa por gente comum?”. Como aquele mendigo, que não caminha, se arrasta, e que Eliane precisou se abaixar à altura dele, rente ao chão, para olhá-lo nos olhos, porque havia ali um homem e para entrevistar o homem era preciso olhá-lo nos olhos. A jornalista explica essa necessidade no último capítulo do livro, “O olhar insubordinado”, em que critica o jornalismo que não enxerga e não escuta.

(…) O mendigo da rua da praia, estatelado no chão, barriga sobre a laje, havia trinta anos. Não sei quantas vezes passei por ele com pena e culpa. A vida que ninguém vê me impôs – e não foi fácil – curvar o pescoço, me agachar e colocar meus olhos no mesmo plano dos olhos dele.

(…) O jornalista é reduzido a um compilador de monólogos, a um aplicador de aspas em série. Especialmente se só pode contar com palavras transmitidas por telefone ou email. Fulano disse, sicrano afirmou.

(…) Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas.

Escrevi um livro-reportagem (“Alguém pra segurar a minha mão” – Penalux, 2006) sobre o direito à morte humanizada e acompanhei pessoas comuns. Visitei casas de pacientes muito pobres; outros, nem tanto. Testemunhei a aproximação e a chegada da morte na intimidade dos quartos das famílias. Pessoas comuns morrem como todas as outras e têm histórias importantes; deixam histórias ricas. Quero continuar me interessando por gente. É gente que faz o mundo.

O ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói.

Foto: Genaro Joner / A vida que ninguém vê – pág. 34

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *