O Conto da Aia

“Fé é apenas uma palavra bordada.”

A primeira edição é de 1992 e já virou série para a TV. Como ainda não me rendi a esse vício, optei por conferir a história de Margaret Atwood da forma como foi concebida originalmente. Encarei o livro e não me arrependi da escolha; cheguei a ter uma breve vontade de ver The Handmaid’s Tale. Passou rapidinho. Não vou assistir à série, porque sei que vou continuar preferindo a narrativa de Atwood.

O tema central de “O Conto da Aia” (RoccoDigital, 2017), o modo como a autora o desenvolve causam medo. Um país sofre um golpe perpetrado por um grupo fundamentalista religioso, que depõe o presidente e o congresso, passa a gerir a nação a partir do que determina a Bíblia e no centro de toda a ação está o domínio e total o controle sobre a vida das mulheres e a reprodução humana. O objetivo principal dos novos governantes é garantir a procriação e o repovoamento da nação. Nessa nova sociedade, há as esposas e há as aias – essas, mulheres aprisionadas em residências de famílias tradicionais, com marido e esposa, para que sejam estupradas pelo chamado “comandante” da casa, e lhes deem um filho.

Não procurei informações prévias sobre o livro; queria (e gosto de) me surpreender. E Margaret Atwood surpreende pela ousadia de um tema controverso, por seu poder criativo e pela narrativa excepcional. A protagonista é quem nos conta de sua experiência na nova república de Gillead. Inicialmente parece uma criança relatando o que vê e descreve com detalhes mínimos o ambiente onde está. Uma nova casa, com um novo comandante e sua esposa e por prazo determinado a fim de que gere uma criança. Todo mês ela é penetrada por seu comandante, num ritual espantoso. É usada mecanicamente e não sente dentro dela um homem. “Ele é apenas um órgão cego”.

Chocam e assustam os detalhamentos de Atwood sobre os guardiões, que podemos chamar de soldados, com acne nas faces, destacados para vigiar e manter em ordem as determinações do Estado implantado. Parece retratar a realidade atual, na derrocada do que nem pudemos chamar de democracia. “Os jovens são com frequência os mais perigosos, os mais fanáticos, os mais nervosos com suas armas. Ainda não aprenderam com o tempo sobre a coisas da vida. Você tem que ir bem devagar com eles.” Ali na esquina, no bar, na academia, pode-se encontrar um ou muitos desses.

Offred é o nome pelo qual é chamada. Não se sabe seu verdadeiro nome. Todas as aias levam o nome do comandante, com o prefixo “Off”. Uma mulher que já fora casada e tivera uma filha. Mulheres casadas por mais de uma vez são desconsideradas como cidadãs, seus filhos lhes são retirados e doados a outras famílias sem filhos, e elas são tornadas aias. Ao correr a história constato que Offred tem um jeito inocente, às vezes, de narrar sua experiência, primeiro por suas características pessoais, de personalidade frágil, insegura, hesitante e pelo treinamento que recebeu para ser cordata.

“O costumeiro, dizia tia Lydia, é aquilo a que vocês estão habituadas. Isso pode não parecer costumeiro para vocês agora, mas depois de algum tempo será. Irá se tornar costumeiro.” É o que se ensina em governos totalitários, seja de que ideologia for: censura aos meios de comunicação, informação controlada, julgamento e punição sumários a quem se desvia do que é estabelecido pela lei. E quem se dispõe a obedecer, habitua-se e passa a considerar tudo aquilo o normal. Quem viveu no passado, no governo de antes, que mantém seus ideais e tenta difundi-los, é punido publicamente, numa sessão de Salvamento, e seus corpos pendurados em um Muro. “O que se espera que sintamos por esses corpos é ódio e desdém. Não é isso o que sinto. Esses corpos pendurados no Muro são viajantes do tempo, anacronismos, vieram para cá do passado.” Para a tia Lydia, uma das criadas da casa e executora das novas regras, a sociedade estaria morrendo por excesso de escolhas e Offred, dividida entre a repulsa pelo que vive e o medo de reagir, afirma que “É a escolha que me apavora.” Sim, apavora. “Hábitos são difíceis de abandonar ou despir.” E há muita gente por aí esbravejando, implorando para que retornemos a velhos sistemas que nos tiraram a liberdade, o direito de pensar e de escolher.

 

“Nosso grande erro foi ensiná-los a ler.

Não faremos isso de novo.”

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