Tudo que morde pede socorro

“Algumas de nós lutamos uma escuridão inteira para soltar as nossas patas das armadilhas velhas e enferrujadas. E quando tudo parece fim, nos lembramos do não, essa palavra de alforria. Que avisa às nossas dores que a desistência não é uma escolha.”

Digo sempre que não escrevo resenhas, porque não sou muito afeita às descrições tipo “o livro tal fala disso, disso e disso…”, no formato mais acadêmico. Prefiro falar sobre o que a história me fez sentir, refletir, pensar, criar ou recriar na mente.

Livros que me tocam ao menos em algum pontinho mínimo me animam a escrever, embora nem sempre escreva, porque ultimamente o ânimo não chega a tanto. Livros me ganham pelo texto; livros me ganham pela coerência, pela amarração dos fatos; livros me ganham quando nenhum parágrafo é chato, interminável, cansativo; livros me ganham quando me impactam na primeira página, mantêm o fôlego até a última e cumprem até o final o que prometem no início.

“Tudo que morde pede socorro”, de Cinthia Kriemler (Patuá, 2019), é tudo isso e mais um tanto. Levei um soco no estômago logo de cara e a mão que empurrou o soco permaneceu fechada aqui dentro, pressionando meu diafragma até o fim.

A impressão é que Cinthia criou frase por frase, uma por vez, medindo uma a uma com régua. “Eu sou um desmoronamento. Lama e pedras servindo de lápide a um túmulo gigantesco que soterra gente e bichos.” Se compôs uma escaleta, imagino que tenha projetado um impacto a cada página, uma arrancada de fôlego para cada dia da história de Leonora em Baependi, para manter a boca aberta do leitor, da primeira à última linha, até a última palavra, para surpreender com os desfechos de todas as histórias nas quais Leonora é envolvida.

Cinthia traz à tona o abuso, a violência, o preconceito, traumas profundos sofridos pelas personagens que se aproximam de Leonora, numa narrativa que não romantiza dramas da vida real. Real mesmo. Sem rodeios, sem meia pressão, sem omissões, sem melindre. Tão claro e direto, que estômago se retorce, uma pedra pontuda para na garganta, o espanto vem à boca e explode num “putaquepariu”!. “Seja currada pelo seu próprio pai, engravide dele, e crie com amor a criança que vai nascer dessa barbárie. E quando aos 20 ou 30 anos, você se prostituir/drogar/suicidar, não tem problema. Você terá cumprido seu destino histórico.”

Leonora é a representação narrativa de muitas mulheres de alma irremediavelmente destruída, e que sobrevivem, ainda que a vida as conclame a situações extremas, ao risco constante de ruir de vez, também na carne.

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