“Os meninos vão olhar pra minha bunda e querer ficar comigo?”

As redes sociais abriram espaço para a proliferação das denúncias. O movimento #MeToo ampliou a força e a voz das vítimas. As mulheres botaram a boca no trombone e revelaram abusos e abusadores protegidos há décadas pelo machismo estrutural. Infelizmente, é necessário aumentar o tom da gritaria, juntar mais gargantas, fazer coro também fora da internet, porque a violência sexual parece não ter freio.

As mulheres deram um passo adiante e encorajaram umas às outras a tornarem públicas suas histórias, ainda que sob o risco de serem culpabilizadas, simplesmente pelo fato de serem o que são, por causa da roupa que vestem, do horário que circulam na rua – comentários que costumam proteger os criminosos. É sempre assim que acontece. No entanto, quantas crianças e idosas são abusadas e estupradas mundo afora? Quantos meninos e meninas, freiras, fiéis das igrejas e religiões várias, atletas?

Dados do Boletim Epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde são alarmantes. Dos 184.524 casos de violência sexual notificados no Brasil, 76,5% foram praticados contra menores de 17 anos de idade. 74,2% das vítimas eram do sexo feminino e 25,8% do sexo masculino. Do total, 51,2% estavam na faixa etária entre 1 e 5 anos (!), 45,5% eram da raça/cor da pele negra, e 3,3% possuíam alguma deficiência ou transtorno. Agora vem o que já se sabe, a pior das informações, mas que parece não escandalizar ninguém: a análise das notificações mostrou que os principais locais onde as violências ocorrem são a própria residência (71,2%). Repetindo: segundo o Boletim divulgado, crianças de 1 a 5 anos são estupradas dentro de casa, repetidas vezes, por familiares ou amigos que frequentam o ambiente. São pais, irmãos, padrastos, primos, tios, avôs, maridos das avós, padrinhos, agregados em geral e, ainda, padres, pastores, gurus espirituais, esses escroques que se aproveitam da confiança que a fé cega favorece. Vítimas fáceis, formadas pela credulidade que as entrega de bandeja nas mãos desses pulhas.

Nos EUA, de acordo com estudo coordenado pelo especialista David Lisak, apenas 36% dos estupros são denunciados. No Brasil os percentuais são muito próximos, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – aqui, a notificação é de 35%. Motivo: a certeza de que serão arremessadas para o lugar de culpadas, mentirosas, trapaceiras, ou a certeza de que não vai dar em nada, “porque homem é assim mesmo e homem protege homem, não adianta”, como já ouvi muitas vezes.

Na hora do ato em si, a falta de reação é ainda mais comum, primeiro porque as mulheres sentem medo de morrer. Ou podem sofrer um torpor causado pela invasão aos seus corpos, pela brutalidade e selvageria, então emudecem, travam. No caso das crianças, por serem estupradas na maioria das vezes dentro de casa por pessoas de sua convivência, acabam por interagir quase normalmente com os agressores. Especialistas explicam que se trata de um mecanismo de defesa: não são capazes de processar que uma pessoa da família ou amigo íntimo possa atacá-las de forma tão violenta.

Um tempo atrás, uma amiga pediu para conversar comigo. Mal chegou a minha casa e foi logo contando que fora estuprada na infância, pelo próprio pai. Ela, as irmãs e o irmão. Todos submetidos à força e ao poder do pai, machão, agressivo, autoritário. Como a história da minha amiga, outras têm sido reveladas. E são tantas, que chego a me perguntar se alguma de nós passou pela vida sem sofrer abuso de homem. Temo que não. A certeza de que têm direitos e poder sobre o corpo feminino e a necessidade de exercer esse poder é tamanha, que é até difícil imaginar uma mulher que nunca tenha passado por qualquer tipo de abuso.

Uma vez questionei uma conhecida sobre o medo que tinha de que a filha de treze anos fosse até à padaria, duas ruas atrás de onde estávamos. Ela me respondeu:

– O marido da minha mãe abusou dela, a estuprou com o dedo e tá solto por aí. Não temos mais sossego depois disso.

E não se trata de gente pobre, da periferia, às quais o senso comum e ignorante sempre atribui esse tipo de comportamento. Falo de gente fina, elegante e nem um pouco sincera, estudada e trabalhada no dinheiro que compra casarão no alto do bairro nobre, com garagem do tamanho de uma quadra de esportes. Atrás dos muros altos dessa gente se escondem, além de piscinas e jardins suntuosos, uma podridão medonha.

E por que isso ocorre?

Porque a maioria permite, silencia, se omite, se esconde, acoberta. Sem contar o persistente discurso que impõe à mulher o papel de objeto, do qual o homem pode e deve dispor quando, como e onde quiser. Vide os comerciais de lingerie para agradar homens; revistas com dicas para sensualizar e conquistar o cara na balada; coach (argh!) ensinando o passo-a-passo para atrair os olhares masculinos; mães que ainda orientam filhas a arrumar homem para casar; mulheres iludidas com tudo isso, enredadas nessa cultura machista acachapante que, mesmo nos dias de hoje, engravidam para garantir um casamento; e muitas etcéteras. A continuar assim, alimentamos esse ciclo histórico de poder e consequente violência. E creio que apenas nós, mulheres, sabemos lutar para mudar essa realidade.

É necessário juntar mais corpos e vozes para engrossar esse movimento. Espero e luto com tudo o que posso e o que aprendo todos os dias para não ver mais uma menina de doze anos experimentar roupa diante do espelho do meu quarto e me perguntando:

– Fala sério, tia, essa calça tá boa mesmo? Jura? Os meninos vão olhar pra minha bunda e querer ficar comigo?

Evidente que rolou uma conversa, mas a menina não é minha filha. O que ela disse foi reprodução do que escuta entre amigas e também em casa, por que não? Quantas vezes ouvi mãe de menina alertando de que “assim nenhum menino vai querer você”! Conheci garota de dez anos que já fazia depilação, porque a mãe exigia que fosse “higiênica desde cedo”. Enquanto o objetivo da roupa, da calcinha, da maquiagem, do sapato, da depilação, for agradar e atrair homem, não estaremos livres da convicção que têm de poder sobre nós.

E tanto filhas quanto mães são vítimas. Fomos educadas por nossos pais e mães para introjetar e replicar essa cultura. E replicamos, no automático, “porque homem é assim mesmo, né?”

Transformar essa realidade é um poder que nós temos – sim, nós temos – e precisamos nos conscientizar disso e partir para mais ações, toda hora, todo dia. Denunciar, estimular a denúncia, orientar, sugerir acompanhamento profissional, ir junto, se for preciso, divulgar nossas campanhas, nosso trabalho nos movimentos, apoiar a criação de políticas públicas e leis, não economizar esforços para garantir a aplicação dessas políticas e leis, ser solidárias umas com as outras em qualquer situação de abuso ou violência.

Importante: é urgente reconhecer que a criança precisa aprender na escola o que não aprende em casa. Aula de educação sexual não ensina ninguém a fazer sexo; ensina as diferenças e o respeito a essas diferenças; ensina autoproteção. Milhares de meninas e meninos são rotineiramente estuprados e abusados em casa, sem saber que é errado, que é uma violência. É no ambiente escolar que professores, pedagogos e psicólogos têm condições de detectar que a criança não está bem, perdeu rendimento, está isolada, retraída, chora no banheiro. Se a criança tiver a mínima noção sobre seu corpo e o corpo do outro, muita violência sexual pode ser evitada. Desconfio muito – muitíssimo – dos homens que são contra a educação sexual no âmbito escolar.

Pra terminar: andam dizendo que a solução para a violência sexual seria a castração química dos estupradores. É preciso ficar claro que esse tipo de crime em nada tem a ver com sexo. Estupro é exercício de poder, é subjugação. O homem que não tiver pênis, vai usar o que tiver à mão, vai fazer com cabo de vassoura, de enxada, ferro, sei lá.

É isso.

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